
de OLIVIER SYLVESTRE
Tradução
MARGARIDA MADEIRA
No AMAS – Auditório Municipal António Silva / Cacém – Sintra
Contornos da dramaturgia
Este projeto acomoda-se no segundo andamento de uma trilogia de espetáculos para adolescentes e núcleos familiares coproduzidos pela HIPÉRION Projeto Teatral e pelo teatromosca. A narrativa estende-se por uma paisagem diarística em que os pontos cénicos ligam comportamentos a vivências insólitas — visões líricas de quem vai encontrando o mundo que recebe.
A passagem do estado da adolescência para uma inserção sociológica traz desafios pessoais, expõe sentimentos desconhecidos que deverão ser harmonizados, visando uma vida adulta livre.

Childhood is a notion of geography (ou o mapa-mundo rasgado)
A narrativa é igual à vida; a ausência de narrativa, à morte. Se Sherazade não encontrar mais contos para narrar, será executada.
Tzevtan Todorov, Poética, 2006
Da memoria e da fabula
A fábula, desde tempos imemoriais, tem por função gregária proteger-nos do medo da Besta Primordial. É uma frase de Shakespeare. Não de William de Stratfordupon-Avon. Do seu homónimo Nicholas, amigo e biógrafo de Bruce Chatwin (1940- 1989), parafraseando o autor de todos os rascunhos de The Prince of Darkness is a Gentleman, obra que nunca chegou a publicar. Todavia postulava amiúde que para os antigos guardiões do fogo as histórias não eram apenas entretenimento, mas um garante de sobrevivência [caixa nº 30 Arquivo B.C: “Man is a talking animal, a storytelling animal”].
Não causa admiração que os demais companheiros de Chatwin (Sepúlveda, Herzog e Rushdie) o caracterizassem como a pessoa mais interessante que jamais conheceram. A biografia de Bruce tem mais páginas do que a soma dos seis romances que publicou durante a sua nómada, curta e preenchida vida. Não sendo o todo igual à soma das partes, fica, porém, a indagação lúdica (sem resposta) do que será deveras mais aparentado com a ficção: a vida que viveu ou as suas magníficas narrativas. A resposta é outra: a besta primordial era, afinal, a sua solar, mas tão atormentada alma. A Gentleman.

A frase que dá título a estas linhas é decalcada da legendagem anglófila da última entrevista de Brell que manifestamente se encanta e assusta com a (sua) infância (sempre o medo). Não é algo de novo nem nada de novo há debaixo do sol. Twain sabia-o bem. Mais do que em Huckleberry (a sua obra magna), é em Sawyer que nos apresenta a fuga das crianças à bestialidade de Indjun Joe. Uma década depois, Berrie é menos feliz, mas certeiro ao perpetuar a infância na Terra do Nunca de Peter Pan; assim como no próprio herói do romance.
Outra vez Brell: a floresta é uma realidade toponímica ou algo de eponímico e ontológico do ponto de vista da espécie humana, ante factum no que concerne à fixação da narrativa em palavra escrita?

Na mais antiga narrativa escrita que conhecemos – O Épico Gilgamesh (Ur III, Suméria, atual Iraque, c. 3000 a C.) Enkidu e Gilgamesh sofrem o primordial anátema de atravessar o Bosque dos Cedros (a floresta). Que veio – no curso contínuo da tradição que é ainda a nossa – integrar o bíblico Génesis; desta feita como Dilmun ou Éden. Seja qual for a direção do caminho, a floresta é sempre, no longo tempo da história (oralizante ou escrita) o locus de um ritual da passagem de uma condição existencial a outra. Quase sempre da infância à adultícia.
A perda da inocência e seu amargo preço: uma consciência de finitude e absurdo. Um outro medo: aquele que é o enjeitado filho da mãe de todas as guerras: a ignorância. Uma dicotomia desconcertante algures Na Floresta Desaparecida da espuma dos (nossos) dias.
Valha-nos a milionésima primeira noite da fábula: aquela em que Sherazade se salva. Não só a si. É a contadora de histórias que deveras salva também o Sultão da sua própria besta interior.

Da ars poética
Enfim o modo, a artesania e a forma: não que nos fosse desconhecida a mestria de Mário Trigo (Uma Ilha – o diálogo meliano, 2022; A Secret About a Secret, 2023 – só para evocar trabalhos recentes de um longo, laborioso e eclético percurso criativo). Porém, é imperativo notar que, na sua encenação para Na Floresta Desaparecida, Trigo apresenta um dispositivo textual dramatúrgico eivado de cinemáticas tonalidades.
Sem perder o foco da dramaturgia, a composição da arte cinematográfica de Syd Field (um analítico acervo de fílmicas fontes, da igualha do método de Aristóteles na abordagem da tragédia que conhecemos da Poética) aliado à narratologia de Todorov, resultam numa originalíssima teatral sonata de Lizt (a única que compôs: sonata para piano em si menor, S.178; Franz Liszt:1811–1886; criador do conceito poema sinfónico); na enganadora serenidade do seu introito e na vertiginosa velocidade do fraseado, pontuado por anotações melódicas e uma obstinada recorrência de síncope: o prólogo da peça, a urgência dos protagonistas (as crianças Oli e Val), as notas narrativas de quem (também) narra (Marcel, o velho) e a obstinada precisão, 16 vezes bem repetida, da palavra chave: o “medo”.
Poucas palavras para uma visão a frio de um sortilégio que é atributo de poucos: parafraseando Marcel, «o tesouro é a recompensa dos corajosos». Como Olivier Sylvestre, que arrisca tudo em Na Floresta Desaparecida (dramatúrgico poema sinfónico) e nos vence, prende e arrebata.
Alexandre Sarrazola, Palmela, fev.25

Ficha artística e técnica
Texto
Olivier Sylvestre
Tradução
Margarida Madeira
Encenação
Mário Trigo
Interpretação
Rafael Barreto
Miguel Coutinho
Milene Fialho
Ilustração
Alex Gozblau
Desenho Luz e Operação Técnica
Diogo Graça
Cenografia
Pedro Silva
Figurinos
Catarina Graça
Direção de Produção
Inês Oliveira
Produção Executiva
e Fotografia
Catarina Lobo
HIPÉRION Projeto Teatral:
Webdesign
Tânia Cadima
Gestão de Apoios
Joana Ferreira

Coprodução
Financiamento



NA FLORESTA DESAPARECIDA
de Olivier Sylvestre
M/12